Por que as Mudanças Climáticas são uma questão LGBTQIA+?
Por Luis Iglesias e Ruth Hollands, Pesquisadores do EmpoderaClima
A atual crise climática é um dos problemas mais urgentes de nosso tempo. Apesar de se entender que os seus impactos atingem todos os seres humanos de forma indiferenciada, a forma como eles se distribuem, tanto em termos de incidência como de intensidade, alerta-nos para algo completamente diferente: a maior parte dos riscos recai sobre as populações vulneráveis, especificamente os grupos marginalizados - que inclui a comunidade LGBTQIA + (abreviatura para lésbica, gay, bissexual, pansexual, transgênero, genderqueer, queer, intersex, agênero, assexuado e outras comunidades de identificação queer).
Uma similaridade importante que podemos destacar quando falamos sobre o clima e as agendas queer é que elas estão na mesma configuração subalterna, com muita resistência necessária para sobreviver. Segundo a coordenadora do GT de Gênero do Engajamundo, Ana Rosa Cyrus, “justiça climática e LGBTQIA + se encontram justamente em um mundo descolonizado, que precisa ser construído a partir de uma nova episteme onde vozes silenciadas sejam ouvidas e participem da construção dos espaços”.
Além disso, Gabriel Mantelli, professor de Direito e consultor da Conectas Direitos Humanos, acredita que ambas são lutas que potencializam a criação de novos direitos e garantias jurídicas: “em termos jurídicos, o clima e as lutas LGBTQIA + acabam sinalizando para o poder público a necessidade de pensar em marcos regulatórios específicos para os setores mais vulneráveis da população. (...) é preciso ter em mente que ambas as lutas levam em conta a questão da justiça distributiva e as formas de colocá-la em prática em uma sociedade intolerante, binária e extrativista”.
Não é por acaso, portanto, que essas comunidades tendem a viver em áreas de maior risco às mudanças climáticas e são menos propensas a ter acesso aos recursos necessários para se realocar ou mesmo sobreviver em cenários de desastres climáticos. Vivenciar eventos difíceis como consequência da crise climática pode marginalizar ainda mais essas comunidades e impactar negativamente seus padrões de vida.
Muitos membros da comunidade queer são vítimas da falta de moradia devido ao estigma em torno de sua orientação sexual ou gênero. A falta de moradia torna essa comunidade mais suscetível aos impactos das mudanças climáticas, já que muitos membros não têm recursos para escapar da violência verbal, emocional ou física em seu ambiente social e, portanto, são forçados a ir às ruas com pouco ou nenhum suporte para sobreviver.
De acordo com um estudo de 2015 conduzido pelo Williams Institute, 40% dos jovens sem-teto nos Estados Unidos se consideram queer. No Reino Unido, esse número está em torno de 24%, indicando uma super-representação de jovens de minorias sexuais e de gênero entre aqueles que vivem nas ruas. Os jovens LGBTQIA + têm 120% mais probabilidade de vivenciar a situação de rua simplesmente porque não se conformam com a narrativa (frequente) da heteronormatividade social e, em muitas áreas, da heteronormatividade política. Essa discriminação torna a população LGBTQIA + vulnerável a consequências fora de seu controle, levando-os a viver na rua ou em abrigos - se estes espaços estiverem disponíveis.
As mudanças climáticas se manifestam em padrões climáticos anormais, que afetam gravemente a população sem-teto em temperaturas extremas. De acordo com os Centros Nacionais de Informação Ambiental da NOAA, todos os 10 meses de agosto mais quentes ocorreram desde 1988 - com os cinco mais quentes ocorrendo desde 2015. A elevação das temperaturas globais pode se tornar algo mortal, já que muitos países experimentam ondas de calor, e as pessoas sem-teto têm que enfrentar e suportar diretamente esses eventos. O mesmo se aplica a temperaturas extremamente baixas, onde mudanças drásticas apenas agravam vulnerabilidades, e essa população estará entre as primeiras das mais atingidas.
Dentro da comunidade também existem disparidades: os transgêneros são os que mais sofrem e são marginalizados em relação às outras identidades. À medida que o planeta se aquece, tempestades, incêndios florestais e inundações mais frequentes e severas irão exacerbar essas vulnerabilidades, e essa população estará entre as primeiras mais atingidas. Muitas pessoas trans estão concentradas em cidades costeiras como São Francisco, Rio de Janeiro, Amsterdã, Telaviv, Taipei, Cidade do Cabo e Kingston, o que as coloca em grande risco com o aumento do nível do mar e de incidências de tempestades, ambos consequências das mudanças climáticas.
A comunidade queer não é apenas vitimada por temperaturas extremas, mas também por fenômenos climáticos extremos. Devido a furacões, ciclones, tsunamis e outros efeitos das mudanças climáticas, a comunidade continua a ser marginalizada, já que muitas vezes não recebe os mesmos recursos que as pessoas heterossexuais. Durante o furacão Katrina em 2005, pessoas trans enfrentaram discriminação em abrigos de emergência e algumas foram até mesmo rejeitadas nos estados americanos de Mississippi e Louisiana.
Durante o terremoto haitiano de 2010, pessoas e famílias LGBTQIA + ficaram vulneráveis em abrigos e lésbicas, mulheres bissexuais, transgêneros e intersexuais foram sujeitas à violência de gênero e ao “estupro corretivo”. Os membros da comunidade LGBTQIA + também são discriminados pela forma como os recursos são alocados no socorro às vítimas de eventos climáticos extremos; documentos podem perguntar sobre a orientação sexual onde as únicas opções possíveis são homem ou mulher, excluindo várias pessoas LGBTQIA + de serem consideradas em esforços de ajuda, discriminando-as e vitimizando-as ainda mais.
Nós não temos, atualmente, medidas de adaptação e mitigação das mudanças climáticas contabilizando a marginalização da população queer, já que “[ainda] há um longo caminho a percorrer em termos de normas específicas, bem como de políticas públicas, para populações LGBTQIA +, tanto internacionalmente como nacionalmente. Se pensarmos no cenário atual do Brasil, ficamos presos nessa discussão em função da situação política antidemocrática e LGBTfóbica instalada no governo federal”, afirma Mantelli.
No entanto, a luta climática adensa criticamente as lutas LGBTQIA + ao trazer um componente estrutural ao debate sobre as ações pró-LGBTQIA +, que seria, por aprofundar a luta para além das questões de gênero, sexualidade e expressões e também incluir questões de território, raça, economia e modos de estar no mundo. Cyrus exclama que “as duas lutas são sobre sobrevivência”, afinal. Ela também acredita que é impossível pensar nas mudanças climáticas e não pensar na parte social dessa questão, mesmo que o pensamento convencional seja que são assuntos separados - em grande parte por causa de uma visão colonial e do norte global sob as questões ambientais.
Essas duas lutas são inseparáveis uma vez que se entenda que precisam ser humanizadas; isto é, descolonizar conhecimento, poder, ser e natureza. Não podemos lutar por um novo planeta sem dialogar com outras possibilidades, entendendo novos fundamentos e esse é um compromisso que as lutas pelo clima precisam incorporar.
De acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), para muitas populações que já são socialmente marginalizadas, a segurança humana será progressivamente prejudicada à medida que o clima muda. Essas questões devem ser tratadas globalmente para determinar o melhor curso de ação para ajudar a comunidade LGBTQIA + e todos os outros que continuam a ser vítimas das ameaças das mudanças climáticas.
Portanto, sim, as mudanças climáticas são uma questão LGBTQIA +, e o movimento pela justiça climática deve construir pontes, não muros.